quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Jan van Eyck, Retrato dos Arnolfini (1434)

Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz


(Chico Buarque, O Meu Amor)





Hoje sem mais palavras, que o Chico já disse tudo.

a múmia, o insecticida, e a vaca mijona



Lá estava, lá aparecia nos écrans dos televisores a descrição de Lozano: entre os sinais particulares, assinalava o cabelo louro e os olhos verdes, “olhos verdes, emerald green”, insistia a voz do entrevistado, “verde veronèse, na designação francesa”, uma cor, bem conhecida dos pintores, que se obtém pela combinação do arseniato com o acetato de cobre. Tratava-se da mais venenosa de todas as cores, começou a explicar o entrevistado, mas nessa altura já o écran era percorrido pela aparição voador a planar muito serena sobre o Alto Juá, em imagens de acaso filmadas por um turista japonês.
José Cardoso Pires, Alexandra Alpha

No seguimento da historieta de ontem, mais meia-meia-dúzia de cores:

O aceto-arsenito de cobre foi descoberto em 1808 e começou a ser comercializado como um pigmento para pintura (conhecido como verde esmeralda, ou verde de Paris) em 1814. O tom era bonito, Cézanne adorou, tal como Monet e Van Gogh. Tudo gente com saúde acima de qualquer suspeita. Cinquenta anos depois fazia furor como veneno contra ratos, escaravelho da batata, mosquitos transmissores de malária, e pestes em geral. Pelo meio causou umas quantas mortes e doenças esquisitas, mas lá que dava um belo verde... Supõe-se que Napoleão tenha morrido em consequência de um tom idêntico no papel de parede. Um conselho: muitas cautelas na escolha do decorador de interiores.

Introduzido na Índia pelo século XV, provavelmente com origem na Pérsia, o pigmento que se segue chegou à Europa já perto de 1800. O amarelo da Índia, assim lhe chamavam, era produzido a partir da urina de vacas alimentadas exclusivamente com folhas de mangueira. É que nem ao menos as deixavam comer a fruta. Diz-se que a sua utilização foi proibida por simpatia para com os bichos, mas o mais provável é que tenha simplesmente caído em desuso em favor do amarelo de cádmio.

Para terminar, um excerto do The Times de 2 de Outubro de 1964:

Uma das cores preferidas dos pintores Pré-Rafaelitas era chamada castanho-múmia – e não por piada. Tratava-se de um pigmento de tom quente, feito da massa que os antigos Egípcios usavam para embalsamar os mortos, e famosa pela sua capacidade de conservação.
Mas agora o castanho-múmia esgotou-se. Geoffrey Roberson-Park, gerente dos conhecidos produtores de tintas C. Robertson de Londres, reconhece com tristeza que a firma já não tem mais múmias. “Talvez tenhamos uns membros desemparelhados para aí algures”, justificou-se, “mas não o suficiente para fazer mais tinta. Vendemos a nossa últma múmia completa há alguns anos por, penso, três libras. Talvez não o devêssemos ter feito. O certo é que não conseguimos arranjar mais.”

Já agora, a pintura lá em cima é A Véspera de Santa Inês, por John Everett Millais, inspirada no poema de Keats. Tem verde e é pré-rafaelita, foi o que se arranjou.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Um azul para o povo

Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas recordava-lhe sempre o destino dos amores contrariados. O doutor Juvenal Urbino sentiu-o assim que entrou na casa, ainda mergulhada em penumbra, onde fora de urgência para tratar um caso que, para ele, já tinha deixado de ser urgente há muitos anos. O refugiado antilhano, inválido de guerra, fotógrafo de crianças e o seu mais tolerante adversário de xadrez, tinha-se posto a salvo das inquietações da memória com um defumador de cianeto de ouro.
Gabriel García Márquez, O amor em tempos de cólera


Um dia (lembrem-me) hei-de alinhavar para aqui os meus primeiros parágrafos preferidos. A abertura de O Amor em Tempos de Cólera é um deles, mas hoje foi convocada por uma razão diferente. Lá chegaremos. Por enquanto é de começar pelo princípio.

No princípio era a terra, o carvão, os óxidos de ferro mais à mão de semear, e assim se faziam os cinzentos, os ocres, os esverdeados, avermelhados, acastanhados, e outros desbotados tons. Há trinta mil anos era o que se arranjava, e não se estava mal de todo. Fundamentalmente, rabiscavam-se animais e mulheres nuas, o que prova que há coisas que nunca nos saem da cabeça, e que a comida é uma delas.

   

Avancemos então um bom punhado de milhares de anos. Com muitas felizes coincidências e algum resquício de ciência à mistura, o homem foi aprendendo a isolar os pigmentos, e a produzir tintas mais intensas e resistentes à passagem do tempo e às agressões naturais. Por alturas da antiguidade clássica, o artista já dispunha de uma paleta jeitosa, mas o azul, em particular, sempre foi uma cor tramada. A principal fonte de pigmentos azuis era a pedra semi-preciosa conhecida por lápis-lazúli, que fornecia uma tonalidade esplêndida, com o inconveniente de ser também esplendidamente cara. Os egípcios, gente industriosa, a quem aprazia presentear os mortos e os faraós (e os faraós mortos) com coisinhas azuis, conseguiram num dia inspirado descobrir um método de produção de um pigmento alternativo e igualmente belo, a partir de materiais bastante mais acessíveis e disponíveis nas redondezas.

É impressionante como, com os conhecimentos rudimentares de que dispunham, conseguiram tal feito, e, na verdade, ainda hoje se discute qual seria ao certo esse processo de fabrico. Estariam então abertas as portas para a democratização do azul? Provavelmente... Não fosse dar-se o caso de alguém ter perdido a receita. Por qualquer razão , o azul egípcio caiu no esquecimento colectivo, e o bom velho lápis-lazúli foi readquirindo o monopólio.

Por alturas da renascença, o lápis-lazúli, extraído em minas situadas no actual Afeganistão, que já na altura não primava pela boa acessibilidade da sua rede viária, entrava na Europa através das rotas comerciais dominadas pelos venezianos. É comum dizer-se que o azul ultramarino (assim se designava o pigmento extraído do lápis-lazúli) era a mais cara das cores. Por mera curiosidade, a púrpura de Tiro, cor popular para as fatiotas de reis, imperadores, e gente de gostos berrantes, produzida a partir de umas caracoletas marinhas apanhadas no Mediterrâneo à razão de dez mil bicharocos para um grama de produto, custa hoje perto de três mil euros por grama. A título de comparação, um grama de ouro vale uns vinte ou trinta euros.

O azul ultramarino tornou-se assim sinónimo de requinte luxuoso. Na pintura, era geralmente utilizado para colorir o manto da Virgem, como nesta Anunciação de Fra Angelico, que não olha a custos (boa parte daqueles tons dourados são em folha de ouro verdadeiro, fixada sobre a tela).






Quando utilizado em frescos, ao contrário das demais cores, que eram aplicadas em “buon fresco”, sobre gesso ainda húmido, de modo a que o pigmento fosse generosamente absorvido, o azul ultramarino, tal como alguns dourados, era por razões óbvias geralmente aplicado “a secco”, depois das outras cores, formando apenas uma finíssima camada, não entranhada. O resultado desta ostentação superficial, séculos mais tarde, não deixa de ser curioso. Repara-se como, na seguinte Anunciação de Fra Lippi, se perdeu o azul das vestes de Maria e o ouro das asas do Arcanjo e dos halos






Alguns séculos passaram sem eventos dignos de nota no que toca à história do azul. Até que, em mil setecentos e pouco, algures em Berlim, um tal Diesbach, enquanto tentava produzir qualquer coisa avermelhada, sintetizou por engano uma molécula nova, que responde por variados nomes, dos quais hexacianoferratotetraférrico é o mais engraçado de se tentar pronunciar. É utilizada em medicina para tratamento de intoxicações por metais pesados, em histologia como marcador de células, e, em pintura, como azul.





Este Enterro de Cristo, por Pieter van der Werff, pintado em 1709 é a mais antiga utilização pictórica de azul da Prússia de que há conhecimento. As características cromáticas não são exactamente as mesmas do lápis-lazúli (para isso seria preciso ainda aguardar umas décadas, até que se descobrisse a síntese laboratorial do azul ultramarino), mas a diferença de preço era avassaladora, e finalmente o azul tornou-se uma cor acessível ao comum dos artistas.

Simultaneamente, com o hexacianoferratotetraférrico, a química descobriu os cianetos (do grego para azul), sobre os quais sei pouco. Apenas que alguns compostos, na presença de ácidos, libertam cianeto de hidrogénio, gás simpático, com um odor inesquecível a amêndoas amargas, muito popular entre nazis exterminadores de Judeus.

E foi assim que, graças à amnésia dos egípcios, à ganância dos mercadores de veneza, e à incompetência de um químico alemão, Jeremiah de Saint-Amour, fotógrafo, xadrezista, e infeliz, obteve o veneno com que pôs fim ao sofrimento. Um azul para os pintores, uma cura para o amor.



(para a Ana Conda, que sabe dizer hexacianoferratotetraférrico)

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Hans Baldung, A Harmonia das Graças (c. 1540)



Assim falou Hera, e Hipnos, jubilante, retorquiu:
-Vamos! Jura pela terrível água do Estige. Pousa uma mão sobre a terra fértil, e a outra sobre o mar salgado e luminoso, para que todos os deuses que rodeiam Cronos nas profundezas sejam testemunhas. Jura que me darás a mão de uma das jovens Cárites, Pasítea, por quem anseio todos os meus dias!

Homero, Ilíada

As negociações não foram fáceis. Hera começou por oferecer a Hipnos um trono de ouro indestrutível, fundido nas forjas de Hefesto. Mas quem tem cu tem medo, e naqueles tempos os deuses também tinham fundilhos. Para mais, Hipnos já tinha ido na mesmíssima cantiga uma vez, e ia-se danando com a brincadeira. Não fosse a ajuda da mãezinha, e Zeus tinha-o feito em picado. Ora, à segunda só cai quem quer, e o que Hera lhe pedia era arriscado: tratava-se de pôr a dormir o próprio Zeus, para a manhosa se escapulir e dar uma ajudinha aos gregos, que tinham chegado ao intervalo a perder para a equipa de Tróia. O dorminhoco Hipnos muito hesitou, mas quando Hera subiu a parada e lhe ofereceu a mão de Pasítea, deixou para trás a sensatez. O amor também os punha tolinhos.

Não é provável que Pasítea, deusa das drogas, seja uma das graças aqui representadas por Baldung, pois que, geralmente, essa honra cabe a Aglaia, Tália, e Eufrosina. Mas se for tão bonita como as estas irmãs compreendo a alegria saltitante de Hipnos.

As graças (Cárites, para os gregos), são um tema pictórico relativamente frequente, tratado, entre tantos outros outros, por Rafael, Botticelli, Cranach, e Rubens. Na composição mais comum são dispostas três em círculo, de forma a apresentar cada uma das figuras num ângulo diferente, e de preferência com pouco roupa (uma boa desculpa para ilustrar o corpo feminino de frente, de perfil, e de costas). A opção de Baldung nesta pintura, ora pendurada no Prado, foi outra, e ainda bem. As expressões faciais são muito humanas e intensas, cheias de personalidade, e tenho um carinho especial pelo pescocito do cisne no canto inferior esquerdo (símbolo de Vénus, provavelmente).

Hans Baldung foi nascido e criado pelas alemanhas, viveu entre 1484 e 1545, mais ano menos ano, estudou com Dürer, e tinha três grandes interesses na vida: jovens muito bonitas, bruxas muito fornicantes, e velhas muito feias. Pintou incessantemente a morte e o envelhecimento, a decadência do corpo. É um dos meus preferidos, e hei-de voltar a ele em breve.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Giuseppe Arcimboldo, Água (1564)



De quando em quando os espelhos e as enciclopédias (para não chamar para aqui as estrelas), conjugados e conjurados, alinham-se num qualquer ângulo secreto e surge algures uma personagem tão bizarra e tão inaudita cuja própria origem terrestre nos parece suspeita.

No ano da graça de 1527, em Milão, ao que consta, mas não franziria as sobrancelhas se me dissessem que tinha sido em Marte, nasceu Giuseppe Arcimboldo, que, por dislexia, por indecisão, para confundir as amantes e os credores, ou só porque sim, também assinava Josephus, Joseph, Josepho, Arcimboldi e Arcimboldus. Há-de certamente ter começado por pintar como os comuns mortais, até que lhe passou alguma coisa pela cabeça e desatou a fazer retratos construídos com imagens de animais, flores, legumes, ou o que mais viesse. E não o internaram, não exorcisaram, não o queimaram na fogueira: convidaram-no para Praga, para a corte do Sacro Império Romano-Germânico, onde serviu sucessivamente três imperadores Habsburgos: Fernando I, Maximiliano II, e Rodolfo II. Foi pintor, arquitecto, engenheiro, cenógrafo, consultor em matérias artísticas, e o que mais fosse preciso. Para Maximiliano, por exemplo, organizou e decorou festas em que se envergavam fatos de fantasia e máscaras grotescas, com cavalos disfarçados de dragões, e, em certa ocasião, um elefante verdadeiro a saltaricar por entre os convidados – provavelmente o bicho oferecido pelo nosso João III, e cuja viagem Saramago conta.

Com Rodolfo II, que o tinha em grande estima e o cumulou de honras, Arcimboldo teve o apogeu da sua carreira. A afeição de Rodolfo por tão excêntrico artista não é de estranhar: o próprio imperador era uma bela peça, com o seu quê de marciano místico, hipocondríaco paranóico, deprimido obsessivo. Governar a coisa pública não era propriamente o seu interesse primordial. Gostava pouco de sair de casa, preferindo dedicar-se a coleccionar relógios, telescópios, instrumentos diversos, plantas, animais exóticos vivos e mortos, múmias, demónios, coisinhas mágicas, disparates em geral, e também arte da boa (era tolinho por Dürer e Brueghel), a ponto de mandar construir toda uma nova ala no palácio para arrumar a tralha que foi adquirindo. Vivia rodeado de alquimistas e astrólogos, entre os quais um certo Johannes Kepler, contratado fundamentalmente para tirar horóscopos ao imperador, mas que nos tempos livres foi deixando obra científica muito séria.


Rodolfo II visto pelo comum dos pintores / Rodolfo II visto por Arcimboldo



P.S: Era capaz de jurar que li em tempos idos um livro sobre estes tolinhos de Praga, qualquer coisa com o rinoceronte de Dürer na capa. Se alguém se lembrar do título, tenham a bondade... A idade não perdoa. E diz-me voz mais sábia e memoriosa que o nosso elefante emigrante não passou de Viena, pelo que o paquiderme do baile do Maximiliano há-de ter sido outro.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

David 3 - Golias 0

O rei revestiu David com a sua armadura, pôs-lhe na cabeça um capacete de bronze e armou-o de uma couraça. David cingiu a espada de Saul por cima de sua armadura e tentou movimentar-se com aquele equipamento inusitado. Mas disse a Saul: Não posso andar com isto, não estou habituado! E, tirando a armadura, pegou no seu cajado e escolheu no regato cinco pedras lisas, pondo-as no alforje de pastor que lhe servia de bolsa. Em seguida, com a sua funda na mão, avançou contra o filisteu. (...) Assim venceu David o filisteu, ferindo-o de morte com uma funda e uma pedra. E como não tinha uma espada, correu ao filisteu, subiu-lhe para cima, arrancou-lhe a espada da bainha e acabou de o matar, cortando-lhe a cabeça.
I Samuel, 17:38-50



Em data desconhecida, mas que se situará pelo segundo quartel do século XV, pela primeira vez desde a antiguidade clássica, foi completada uma escultura autónoma - que não inserida numa peça decorativa ou arquitectónica - de um nu masculino. O atrevimento coube a Donatello, que moldou em bronze um David vitorioso, com um pé assente sobre a cabeça de Golias, a quem acabou de decapitar. Quase seiscentos anos depois, a pose sinuosa, adolescente, francamente andrógina, a nudez reforçada pelo chapéu e pelas botas, a pena do capacete de Golias que roça a perna e a coxa de David, transmitem ainda audacidade, erotismo, e uma atmosfera fetichista. E antes de me julgarem pervertido, aviso já que não sou o pior.




O mesmo David, desta feita deambulando pensativamente antes da batalha, num momento de conflito interno, foi resgatado do mármore por Miguel Ângelo em 1504. Nas seis ou sete décadas que decorreram entre a realização de ambas as peças, o renascimento amadureceu, e o classicismo atingiu o seu auge: o efebo fez-se homem, o corpo musculou-se e emasculou-se, e ganhou contornos idealizados, platónicos.



Cento e vinte anos mais tarde, Gian Lorenzo Bernini retratou David no auge do combate. O estilo é já barroco, a tensão física é evidente, o rosto é intenso e contorcido, e todos os músculos do corpo transmitem dinâmica e força e agressividade.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

o herdeiro de Luís XIV


Luís XIV e sua família retratados como deuses romanos por Jean Nocret em 1670

Do meu aleatório passeio diário pelos bosques da wikipedia, na sequência de instruções médicas para sair mais e andar a pé, colhi o seguinte pedaço de informação vital: Juan "¿Por qué no te callas?" Carlos I de Espanha é neto do neto do neto do neto de Luís "L'état c'est moi" XIV de França. Atrevo-me a sugerir que, ali pelo meio, alguém há-de ter saído à mãe, pois que não vislumbro as mais pequenas parecenças entre ambos. De resto, tive em tempos oportunidade de desenvolver estudos aprofundados sobre a matéria, recorrendo às mais modernas técnicas de investigação forense, e não há quem me convença de que o legítimo sucessor do Rei Sol não seja Robert "whole lotta love" Plant.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Camilo Pessanha, Vénus (1920)



I

À flor da vaga, o seu cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda...
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razão se perde!

Pútrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, num balanço alaga,
E reflui (um olfacto que se embriaga)
Como em um sorvo, murmura de gozo.

O seu esboço, na marinha turva...
De pé flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os pés atrás, como voando...

E as ondas lutam, como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia, coa salsugem.

II

Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
— Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.

E a vista sonda, reconstrui, compara,
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
— Ó fúlgida visão, linda mentira!

Róseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...


Perguntavam-me ontem pela origem do título "pedacinhos de ossos". Aí ficou ela, a Vénus do Pessanha. Uma vida que é um naufrágio. Uma deusa inebriante e morta, flutuando, como nós, por sobre os destroços das coisas.

Camilo Pessanha nasceu em Coimbra em 1867. Cursou direito, viajou para Macau, adquiriu no comércio da especialidade uma companheira, Lei Ngoi Long, Águia de Prata, trabalhou nisto e naquilo, e morreu tuberculoso e opiómano. Deixou-nos a Clepsidra, mas não merecíamos tanto.

domingo, 20 de setembro de 2009

Domenico Ghirlandaio, Retrato de Giovanna Tornabuoni (1488)



Se a arte pudesse reproduzir a nobreza e o espírito, não haveria pintura mais bela no mundo do que esta.

A inscrição em latim é uma adaptação de um epigrama de Marcial, poeta Romano do primeiro século depois de Cristo, e traduz como que um lamento do Ghirlandaio: fiz tudo o que sei, mas não é possível pintar fielmente algo tão perfeito como ela. Pela parte que me toca, o pintor foi algo modesto: este retrato é das mais belas representações artísticas de uma mulher, e irradia dignidade. A pose em perfil oculta o olhar, mas ainda assim é impossível não sentir uma espécia de reverência perante a presença da Giovanna.

Os traços da modelo reproduzem o ideal de beleza feminina da época: testa alta, pescoço longo, rosto clássico, pele e cabelos claros. O trabalho na indumentária e nos adornos é elaboradíssimo, talvez fruto da experiência do pintor como joalheiro. A iluminação do rosto transmite tridimensionalidade, apesar da pose estática.

A título de curiosidade: Ghirlandaio inseriu uma imagem praticamente idêntica da Giovanna numa cena bíblica que pintou nos frescos capela dos Tornabuoni.

Dramatis Personae:

Domenico começou por trabalhar como joalheiro, como o pai, de quem herdou a alcunha "Il Ghirlandaio" (o que faz grinaldas). Em boa hora se voltou para as tintas, tendo-se tornado um dos grandes mestres do renascimento em Florença, onde chegou a ter como aprendiz um tal de Miguel Ângelo.

Giovanna degli Albizzi, menina de boas famílias, casou pelos seus 18 anos com Lorenzo Tornaboni, comerciante e banqueiro com tanto de riqueza como de bom gosto. Não viveram felizes para sempre, pois que a pobre rapariga morreu 2 anos depois, em trabalho de parto.

J. P. Morgan, já agora, abastadíssimo banqueiro estado-unidense do século XIX, comprou este retrato para a parede do escritório. Lembrava-o de Amelia Sturges, a sua primeira mulher, que casou já em estado terminal e morreu poucos meses depois.

Donde se conclui que se o dinheiro não traz felicidade, pelo menos paga coisas bonitas. Por exemplo, uma ida e volta a Madrid para ver a Giovanna em pessoa, no Thyssen-Bornemisza.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Jean Fouquet, Virgem com o Menino (c. 1450)


Recordo-me de ter visto em criança, durante as férias num lugarejo de veraneio, um papel afixado à entrada de uma capela onde o prior rogava respeito pelo local sagrado, e, mais especificamente, que não entrassem senhoras senão com o peito devidamente velado. Só alguns anos depois haveria de perceber o sentido do texto, mas a sonoridade de "peito velado" ficou-me até hoje.

Esta "Virgem com o Menino, Rodeados de Anjos", actualmente exposta no Real Museu de Belas Artes de Antuérpia, constitui a metade direita de um díptico (dito de Melun) pintado pelo francês Jean Fouquet por volta de 1450. Sublinho o carácter gótico já tardio, as cores fortíssimas e contrastantes dos anjos em segundo plano, a palidez dos tons de pele, o vestido elegante (não destoaria numa festa dos dias de hoje), o penteado radical (estava na moda rapar a parte da frente da cabeça) e o corpo blasfemo da virgem.

Um século mais tarde, com o Concílio de Trento, a coisa começaria a piar bastante mais fino em matéria de decotes, mas por esta altura a exposição da mama da virgem não era tão rara assim, estando geralmente associada à aleitação. Os dois livros que consultei dizem-me que não é esse o caso nesta imagem: a iconografia não corresponde à da amamentação do menino, e o peito desvelado, que tanto ofenderia o pároco da capela da minha infância, teria uma intenção francamente erótica.

O visitante sério e digno a quem repugne a calhandrice deverá ficar-se por por aqui mesmo. Os demais, ficarão a saber que a dama retratada como virgem Maria dava pelo nome de Agnès Sorel, também conhecida por la dame de Beauté, amante predilecta de Carlos VII, rei de França. Ao que se sabe, também terá dado umas voltas com o tesoureiro do rei, Étienne Chevallier, que encomendou o díptico a Fouquet, de quem era cliente regular. Gosto de imaginar que pagou o quadro com um desfalque no mealheiro do rei. Agnès morreu em 1450, de desinteria, segundo constou na altura. Em 2005, gente que se interessa por estas coisas (a sério que não fui eu) decidiu exumar o que restava da senhora, e concluiu que a morte se deveu a intoxicação por mercúrio. Acidente? Homicídio? Abrem-se as portas às teorias de conspiração. Carlos VII, esse, recuperou do luto e seguiu a vidinha, dedicando os seus afectos voláteis a uma prima da falecida, Antoinette de Maignelais, uma jovem de dezasseis anos que o rei tratou de casar com um homem de confiança, pagando-lhe a bom preço o benevolente par de cornos. Contudo, como bem se sabe, o amor só é eterno enquanto dura, e Carlos VII não durou muito mais: morreu em 1461, e a Antoinette teve de procurar trabalho noutro lado, tornando-se amante de Francisco II, duque da Bretanha.

Advertência

Serve o labirinto desengonçado que ora se inicia de arquivo de recortes e tolices sortidas. Qualquer coisa entre um gabinete de curiosidades e o gabinete do dr. Caligari. Coscuvilhem à vontade, fumem se quiserem, comentem se vos der na veneta, mas não se queixem da desarrumação e de que há lixo debaixo do tapete.