terça-feira, 29 de setembro de 2009

Giuseppe Arcimboldo, Água (1564)



De quando em quando os espelhos e as enciclopédias (para não chamar para aqui as estrelas), conjugados e conjurados, alinham-se num qualquer ângulo secreto e surge algures uma personagem tão bizarra e tão inaudita cuja própria origem terrestre nos parece suspeita.

No ano da graça de 1527, em Milão, ao que consta, mas não franziria as sobrancelhas se me dissessem que tinha sido em Marte, nasceu Giuseppe Arcimboldo, que, por dislexia, por indecisão, para confundir as amantes e os credores, ou só porque sim, também assinava Josephus, Joseph, Josepho, Arcimboldi e Arcimboldus. Há-de certamente ter começado por pintar como os comuns mortais, até que lhe passou alguma coisa pela cabeça e desatou a fazer retratos construídos com imagens de animais, flores, legumes, ou o que mais viesse. E não o internaram, não exorcisaram, não o queimaram na fogueira: convidaram-no para Praga, para a corte do Sacro Império Romano-Germânico, onde serviu sucessivamente três imperadores Habsburgos: Fernando I, Maximiliano II, e Rodolfo II. Foi pintor, arquitecto, engenheiro, cenógrafo, consultor em matérias artísticas, e o que mais fosse preciso. Para Maximiliano, por exemplo, organizou e decorou festas em que se envergavam fatos de fantasia e máscaras grotescas, com cavalos disfarçados de dragões, e, em certa ocasião, um elefante verdadeiro a saltaricar por entre os convidados – provavelmente o bicho oferecido pelo nosso João III, e cuja viagem Saramago conta.

Com Rodolfo II, que o tinha em grande estima e o cumulou de honras, Arcimboldo teve o apogeu da sua carreira. A afeição de Rodolfo por tão excêntrico artista não é de estranhar: o próprio imperador era uma bela peça, com o seu quê de marciano místico, hipocondríaco paranóico, deprimido obsessivo. Governar a coisa pública não era propriamente o seu interesse primordial. Gostava pouco de sair de casa, preferindo dedicar-se a coleccionar relógios, telescópios, instrumentos diversos, plantas, animais exóticos vivos e mortos, múmias, demónios, coisinhas mágicas, disparates em geral, e também arte da boa (era tolinho por Dürer e Brueghel), a ponto de mandar construir toda uma nova ala no palácio para arrumar a tralha que foi adquirindo. Vivia rodeado de alquimistas e astrólogos, entre os quais um certo Johannes Kepler, contratado fundamentalmente para tirar horóscopos ao imperador, mas que nos tempos livres foi deixando obra científica muito séria.


Rodolfo II visto pelo comum dos pintores / Rodolfo II visto por Arcimboldo



P.S: Era capaz de jurar que li em tempos idos um livro sobre estes tolinhos de Praga, qualquer coisa com o rinoceronte de Dürer na capa. Se alguém se lembrar do título, tenham a bondade... A idade não perdoa. E diz-me voz mais sábia e memoriosa que o nosso elefante emigrante não passou de Viena, pelo que o paquiderme do baile do Maximiliano há-de ter sido outro.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

David 3 - Golias 0

O rei revestiu David com a sua armadura, pôs-lhe na cabeça um capacete de bronze e armou-o de uma couraça. David cingiu a espada de Saul por cima de sua armadura e tentou movimentar-se com aquele equipamento inusitado. Mas disse a Saul: Não posso andar com isto, não estou habituado! E, tirando a armadura, pegou no seu cajado e escolheu no regato cinco pedras lisas, pondo-as no alforje de pastor que lhe servia de bolsa. Em seguida, com a sua funda na mão, avançou contra o filisteu. (...) Assim venceu David o filisteu, ferindo-o de morte com uma funda e uma pedra. E como não tinha uma espada, correu ao filisteu, subiu-lhe para cima, arrancou-lhe a espada da bainha e acabou de o matar, cortando-lhe a cabeça.
I Samuel, 17:38-50



Em data desconhecida, mas que se situará pelo segundo quartel do século XV, pela primeira vez desde a antiguidade clássica, foi completada uma escultura autónoma - que não inserida numa peça decorativa ou arquitectónica - de um nu masculino. O atrevimento coube a Donatello, que moldou em bronze um David vitorioso, com um pé assente sobre a cabeça de Golias, a quem acabou de decapitar. Quase seiscentos anos depois, a pose sinuosa, adolescente, francamente andrógina, a nudez reforçada pelo chapéu e pelas botas, a pena do capacete de Golias que roça a perna e a coxa de David, transmitem ainda audacidade, erotismo, e uma atmosfera fetichista. E antes de me julgarem pervertido, aviso já que não sou o pior.




O mesmo David, desta feita deambulando pensativamente antes da batalha, num momento de conflito interno, foi resgatado do mármore por Miguel Ângelo em 1504. Nas seis ou sete décadas que decorreram entre a realização de ambas as peças, o renascimento amadureceu, e o classicismo atingiu o seu auge: o efebo fez-se homem, o corpo musculou-se e emasculou-se, e ganhou contornos idealizados, platónicos.



Cento e vinte anos mais tarde, Gian Lorenzo Bernini retratou David no auge do combate. O estilo é já barroco, a tensão física é evidente, o rosto é intenso e contorcido, e todos os músculos do corpo transmitem dinâmica e força e agressividade.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

o herdeiro de Luís XIV


Luís XIV e sua família retratados como deuses romanos por Jean Nocret em 1670

Do meu aleatório passeio diário pelos bosques da wikipedia, na sequência de instruções médicas para sair mais e andar a pé, colhi o seguinte pedaço de informação vital: Juan "¿Por qué no te callas?" Carlos I de Espanha é neto do neto do neto do neto de Luís "L'état c'est moi" XIV de França. Atrevo-me a sugerir que, ali pelo meio, alguém há-de ter saído à mãe, pois que não vislumbro as mais pequenas parecenças entre ambos. De resto, tive em tempos oportunidade de desenvolver estudos aprofundados sobre a matéria, recorrendo às mais modernas técnicas de investigação forense, e não há quem me convença de que o legítimo sucessor do Rei Sol não seja Robert "whole lotta love" Plant.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Camilo Pessanha, Vénus (1920)



I

À flor da vaga, o seu cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda...
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razão se perde!

Pútrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, num balanço alaga,
E reflui (um olfacto que se embriaga)
Como em um sorvo, murmura de gozo.

O seu esboço, na marinha turva...
De pé flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os pés atrás, como voando...

E as ondas lutam, como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia, coa salsugem.

II

Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
— Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.

E a vista sonda, reconstrui, compara,
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
— Ó fúlgida visão, linda mentira!

Róseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...


Perguntavam-me ontem pela origem do título "pedacinhos de ossos". Aí ficou ela, a Vénus do Pessanha. Uma vida que é um naufrágio. Uma deusa inebriante e morta, flutuando, como nós, por sobre os destroços das coisas.

Camilo Pessanha nasceu em Coimbra em 1867. Cursou direito, viajou para Macau, adquiriu no comércio da especialidade uma companheira, Lei Ngoi Long, Águia de Prata, trabalhou nisto e naquilo, e morreu tuberculoso e opiómano. Deixou-nos a Clepsidra, mas não merecíamos tanto.

domingo, 20 de setembro de 2009

Domenico Ghirlandaio, Retrato de Giovanna Tornabuoni (1488)



Se a arte pudesse reproduzir a nobreza e o espírito, não haveria pintura mais bela no mundo do que esta.

A inscrição em latim é uma adaptação de um epigrama de Marcial, poeta Romano do primeiro século depois de Cristo, e traduz como que um lamento do Ghirlandaio: fiz tudo o que sei, mas não é possível pintar fielmente algo tão perfeito como ela. Pela parte que me toca, o pintor foi algo modesto: este retrato é das mais belas representações artísticas de uma mulher, e irradia dignidade. A pose em perfil oculta o olhar, mas ainda assim é impossível não sentir uma espécia de reverência perante a presença da Giovanna.

Os traços da modelo reproduzem o ideal de beleza feminina da época: testa alta, pescoço longo, rosto clássico, pele e cabelos claros. O trabalho na indumentária e nos adornos é elaboradíssimo, talvez fruto da experiência do pintor como joalheiro. A iluminação do rosto transmite tridimensionalidade, apesar da pose estática.

A título de curiosidade: Ghirlandaio inseriu uma imagem praticamente idêntica da Giovanna numa cena bíblica que pintou nos frescos capela dos Tornabuoni.

Dramatis Personae:

Domenico começou por trabalhar como joalheiro, como o pai, de quem herdou a alcunha "Il Ghirlandaio" (o que faz grinaldas). Em boa hora se voltou para as tintas, tendo-se tornado um dos grandes mestres do renascimento em Florença, onde chegou a ter como aprendiz um tal de Miguel Ângelo.

Giovanna degli Albizzi, menina de boas famílias, casou pelos seus 18 anos com Lorenzo Tornaboni, comerciante e banqueiro com tanto de riqueza como de bom gosto. Não viveram felizes para sempre, pois que a pobre rapariga morreu 2 anos depois, em trabalho de parto.

J. P. Morgan, já agora, abastadíssimo banqueiro estado-unidense do século XIX, comprou este retrato para a parede do escritório. Lembrava-o de Amelia Sturges, a sua primeira mulher, que casou já em estado terminal e morreu poucos meses depois.

Donde se conclui que se o dinheiro não traz felicidade, pelo menos paga coisas bonitas. Por exemplo, uma ida e volta a Madrid para ver a Giovanna em pessoa, no Thyssen-Bornemisza.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Jean Fouquet, Virgem com o Menino (c. 1450)


Recordo-me de ter visto em criança, durante as férias num lugarejo de veraneio, um papel afixado à entrada de uma capela onde o prior rogava respeito pelo local sagrado, e, mais especificamente, que não entrassem senhoras senão com o peito devidamente velado. Só alguns anos depois haveria de perceber o sentido do texto, mas a sonoridade de "peito velado" ficou-me até hoje.

Esta "Virgem com o Menino, Rodeados de Anjos", actualmente exposta no Real Museu de Belas Artes de Antuérpia, constitui a metade direita de um díptico (dito de Melun) pintado pelo francês Jean Fouquet por volta de 1450. Sublinho o carácter gótico já tardio, as cores fortíssimas e contrastantes dos anjos em segundo plano, a palidez dos tons de pele, o vestido elegante (não destoaria numa festa dos dias de hoje), o penteado radical (estava na moda rapar a parte da frente da cabeça) e o corpo blasfemo da virgem.

Um século mais tarde, com o Concílio de Trento, a coisa começaria a piar bastante mais fino em matéria de decotes, mas por esta altura a exposição da mama da virgem não era tão rara assim, estando geralmente associada à aleitação. Os dois livros que consultei dizem-me que não é esse o caso nesta imagem: a iconografia não corresponde à da amamentação do menino, e o peito desvelado, que tanto ofenderia o pároco da capela da minha infância, teria uma intenção francamente erótica.

O visitante sério e digno a quem repugne a calhandrice deverá ficar-se por por aqui mesmo. Os demais, ficarão a saber que a dama retratada como virgem Maria dava pelo nome de Agnès Sorel, também conhecida por la dame de Beauté, amante predilecta de Carlos VII, rei de França. Ao que se sabe, também terá dado umas voltas com o tesoureiro do rei, Étienne Chevallier, que encomendou o díptico a Fouquet, de quem era cliente regular. Gosto de imaginar que pagou o quadro com um desfalque no mealheiro do rei. Agnès morreu em 1450, de desinteria, segundo constou na altura. Em 2005, gente que se interessa por estas coisas (a sério que não fui eu) decidiu exumar o que restava da senhora, e concluiu que a morte se deveu a intoxicação por mercúrio. Acidente? Homicídio? Abrem-se as portas às teorias de conspiração. Carlos VII, esse, recuperou do luto e seguiu a vidinha, dedicando os seus afectos voláteis a uma prima da falecida, Antoinette de Maignelais, uma jovem de dezasseis anos que o rei tratou de casar com um homem de confiança, pagando-lhe a bom preço o benevolente par de cornos. Contudo, como bem se sabe, o amor só é eterno enquanto dura, e Carlos VII não durou muito mais: morreu em 1461, e a Antoinette teve de procurar trabalho noutro lado, tornando-se amante de Francisco II, duque da Bretanha.

Advertência

Serve o labirinto desengonçado que ora se inicia de arquivo de recortes e tolices sortidas. Qualquer coisa entre um gabinete de curiosidades e o gabinete do dr. Caligari. Coscuvilhem à vontade, fumem se quiserem, comentem se vos der na veneta, mas não se queixem da desarrumação e de que há lixo debaixo do tapete.