segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Camilo Pessanha, Vénus (1920)



I

À flor da vaga, o seu cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda...
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razão se perde!

Pútrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, num balanço alaga,
E reflui (um olfacto que se embriaga)
Como em um sorvo, murmura de gozo.

O seu esboço, na marinha turva...
De pé flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os pés atrás, como voando...

E as ondas lutam, como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia, coa salsugem.

II

Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
— Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.

E a vista sonda, reconstrui, compara,
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
— Ó fúlgida visão, linda mentira!

Róseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...


Perguntavam-me ontem pela origem do título "pedacinhos de ossos". Aí ficou ela, a Vénus do Pessanha. Uma vida que é um naufrágio. Uma deusa inebriante e morta, flutuando, como nós, por sobre os destroços das coisas.

Camilo Pessanha nasceu em Coimbra em 1867. Cursou direito, viajou para Macau, adquiriu no comércio da especialidade uma companheira, Lei Ngoi Long, Águia de Prata, trabalhou nisto e naquilo, e morreu tuberculoso e opiómano. Deixou-nos a Clepsidra, mas não merecíamos tanto.

1 comentário: