quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Um azul para o povo

Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas recordava-lhe sempre o destino dos amores contrariados. O doutor Juvenal Urbino sentiu-o assim que entrou na casa, ainda mergulhada em penumbra, onde fora de urgência para tratar um caso que, para ele, já tinha deixado de ser urgente há muitos anos. O refugiado antilhano, inválido de guerra, fotógrafo de crianças e o seu mais tolerante adversário de xadrez, tinha-se posto a salvo das inquietações da memória com um defumador de cianeto de ouro.
Gabriel García Márquez, O amor em tempos de cólera


Um dia (lembrem-me) hei-de alinhavar para aqui os meus primeiros parágrafos preferidos. A abertura de O Amor em Tempos de Cólera é um deles, mas hoje foi convocada por uma razão diferente. Lá chegaremos. Por enquanto é de começar pelo princípio.

No princípio era a terra, o carvão, os óxidos de ferro mais à mão de semear, e assim se faziam os cinzentos, os ocres, os esverdeados, avermelhados, acastanhados, e outros desbotados tons. Há trinta mil anos era o que se arranjava, e não se estava mal de todo. Fundamentalmente, rabiscavam-se animais e mulheres nuas, o que prova que há coisas que nunca nos saem da cabeça, e que a comida é uma delas.

   

Avancemos então um bom punhado de milhares de anos. Com muitas felizes coincidências e algum resquício de ciência à mistura, o homem foi aprendendo a isolar os pigmentos, e a produzir tintas mais intensas e resistentes à passagem do tempo e às agressões naturais. Por alturas da antiguidade clássica, o artista já dispunha de uma paleta jeitosa, mas o azul, em particular, sempre foi uma cor tramada. A principal fonte de pigmentos azuis era a pedra semi-preciosa conhecida por lápis-lazúli, que fornecia uma tonalidade esplêndida, com o inconveniente de ser também esplendidamente cara. Os egípcios, gente industriosa, a quem aprazia presentear os mortos e os faraós (e os faraós mortos) com coisinhas azuis, conseguiram num dia inspirado descobrir um método de produção de um pigmento alternativo e igualmente belo, a partir de materiais bastante mais acessíveis e disponíveis nas redondezas.

É impressionante como, com os conhecimentos rudimentares de que dispunham, conseguiram tal feito, e, na verdade, ainda hoje se discute qual seria ao certo esse processo de fabrico. Estariam então abertas as portas para a democratização do azul? Provavelmente... Não fosse dar-se o caso de alguém ter perdido a receita. Por qualquer razão , o azul egípcio caiu no esquecimento colectivo, e o bom velho lápis-lazúli foi readquirindo o monopólio.

Por alturas da renascença, o lápis-lazúli, extraído em minas situadas no actual Afeganistão, que já na altura não primava pela boa acessibilidade da sua rede viária, entrava na Europa através das rotas comerciais dominadas pelos venezianos. É comum dizer-se que o azul ultramarino (assim se designava o pigmento extraído do lápis-lazúli) era a mais cara das cores. Por mera curiosidade, a púrpura de Tiro, cor popular para as fatiotas de reis, imperadores, e gente de gostos berrantes, produzida a partir de umas caracoletas marinhas apanhadas no Mediterrâneo à razão de dez mil bicharocos para um grama de produto, custa hoje perto de três mil euros por grama. A título de comparação, um grama de ouro vale uns vinte ou trinta euros.

O azul ultramarino tornou-se assim sinónimo de requinte luxuoso. Na pintura, era geralmente utilizado para colorir o manto da Virgem, como nesta Anunciação de Fra Angelico, que não olha a custos (boa parte daqueles tons dourados são em folha de ouro verdadeiro, fixada sobre a tela).






Quando utilizado em frescos, ao contrário das demais cores, que eram aplicadas em “buon fresco”, sobre gesso ainda húmido, de modo a que o pigmento fosse generosamente absorvido, o azul ultramarino, tal como alguns dourados, era por razões óbvias geralmente aplicado “a secco”, depois das outras cores, formando apenas uma finíssima camada, não entranhada. O resultado desta ostentação superficial, séculos mais tarde, não deixa de ser curioso. Repara-se como, na seguinte Anunciação de Fra Lippi, se perdeu o azul das vestes de Maria e o ouro das asas do Arcanjo e dos halos






Alguns séculos passaram sem eventos dignos de nota no que toca à história do azul. Até que, em mil setecentos e pouco, algures em Berlim, um tal Diesbach, enquanto tentava produzir qualquer coisa avermelhada, sintetizou por engano uma molécula nova, que responde por variados nomes, dos quais hexacianoferratotetraférrico é o mais engraçado de se tentar pronunciar. É utilizada em medicina para tratamento de intoxicações por metais pesados, em histologia como marcador de células, e, em pintura, como azul.





Este Enterro de Cristo, por Pieter van der Werff, pintado em 1709 é a mais antiga utilização pictórica de azul da Prússia de que há conhecimento. As características cromáticas não são exactamente as mesmas do lápis-lazúli (para isso seria preciso ainda aguardar umas décadas, até que se descobrisse a síntese laboratorial do azul ultramarino), mas a diferença de preço era avassaladora, e finalmente o azul tornou-se uma cor acessível ao comum dos artistas.

Simultaneamente, com o hexacianoferratotetraférrico, a química descobriu os cianetos (do grego para azul), sobre os quais sei pouco. Apenas que alguns compostos, na presença de ácidos, libertam cianeto de hidrogénio, gás simpático, com um odor inesquecível a amêndoas amargas, muito popular entre nazis exterminadores de Judeus.

E foi assim que, graças à amnésia dos egípcios, à ganância dos mercadores de veneza, e à incompetência de um químico alemão, Jeremiah de Saint-Amour, fotógrafo, xadrezista, e infeliz, obteve o veneno com que pôs fim ao sofrimento. Um azul para os pintores, uma cura para o amor.



(para a Ana Conda, que sabe dizer hexacianoferratotetraférrico)

6 comentários:

  1. [Fe(CN)6]3Fe4, afinal é isto.
    E como será a fórmula química do azul cobarde?

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  2. Adorei este post escrito em azul do seu.
    Assim, rendo-lhe a minha homenagem, escrita em azul do meu.
    Quando um dia for avô, i'll see a neto.
    Por agora despeço-me a assobiar: somewhere over the rainbow, skyes are blue...

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  3. ana conda: Não sei... Vamos tentar fazer uma, átomo por átomo. Eu começo com um de carbono: cobarde soa a orgânico.

    conde-lírios: obrigado pela visita e pela música. agora fiquei com vontade de ir ouvir, claro.

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  4. Força!
    Fica aqui uma sugestão: http://www.youtube.com/watch?v=OgGvml0cOKA

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  5. Cobarde soa a "em conformidade com o mundo".
    Muito orgânico.
    Vamos fazer uma molécula bonita, com muito oxigénio.

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