quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Jan van Eyck, Retrato dos Arnolfini (1434)

Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz


(Chico Buarque, O Meu Amor)





Hoje sem mais palavras, que o Chico já disse tudo.

a múmia, o insecticida, e a vaca mijona



Lá estava, lá aparecia nos écrans dos televisores a descrição de Lozano: entre os sinais particulares, assinalava o cabelo louro e os olhos verdes, “olhos verdes, emerald green”, insistia a voz do entrevistado, “verde veronèse, na designação francesa”, uma cor, bem conhecida dos pintores, que se obtém pela combinação do arseniato com o acetato de cobre. Tratava-se da mais venenosa de todas as cores, começou a explicar o entrevistado, mas nessa altura já o écran era percorrido pela aparição voador a planar muito serena sobre o Alto Juá, em imagens de acaso filmadas por um turista japonês.
José Cardoso Pires, Alexandra Alpha

No seguimento da historieta de ontem, mais meia-meia-dúzia de cores:

O aceto-arsenito de cobre foi descoberto em 1808 e começou a ser comercializado como um pigmento para pintura (conhecido como verde esmeralda, ou verde de Paris) em 1814. O tom era bonito, Cézanne adorou, tal como Monet e Van Gogh. Tudo gente com saúde acima de qualquer suspeita. Cinquenta anos depois fazia furor como veneno contra ratos, escaravelho da batata, mosquitos transmissores de malária, e pestes em geral. Pelo meio causou umas quantas mortes e doenças esquisitas, mas lá que dava um belo verde... Supõe-se que Napoleão tenha morrido em consequência de um tom idêntico no papel de parede. Um conselho: muitas cautelas na escolha do decorador de interiores.

Introduzido na Índia pelo século XV, provavelmente com origem na Pérsia, o pigmento que se segue chegou à Europa já perto de 1800. O amarelo da Índia, assim lhe chamavam, era produzido a partir da urina de vacas alimentadas exclusivamente com folhas de mangueira. É que nem ao menos as deixavam comer a fruta. Diz-se que a sua utilização foi proibida por simpatia para com os bichos, mas o mais provável é que tenha simplesmente caído em desuso em favor do amarelo de cádmio.

Para terminar, um excerto do The Times de 2 de Outubro de 1964:

Uma das cores preferidas dos pintores Pré-Rafaelitas era chamada castanho-múmia – e não por piada. Tratava-se de um pigmento de tom quente, feito da massa que os antigos Egípcios usavam para embalsamar os mortos, e famosa pela sua capacidade de conservação.
Mas agora o castanho-múmia esgotou-se. Geoffrey Roberson-Park, gerente dos conhecidos produtores de tintas C. Robertson de Londres, reconhece com tristeza que a firma já não tem mais múmias. “Talvez tenhamos uns membros desemparelhados para aí algures”, justificou-se, “mas não o suficiente para fazer mais tinta. Vendemos a nossa últma múmia completa há alguns anos por, penso, três libras. Talvez não o devêssemos ter feito. O certo é que não conseguimos arranjar mais.”

Já agora, a pintura lá em cima é A Véspera de Santa Inês, por John Everett Millais, inspirada no poema de Keats. Tem verde e é pré-rafaelita, foi o que se arranjou.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Um azul para o povo

Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas recordava-lhe sempre o destino dos amores contrariados. O doutor Juvenal Urbino sentiu-o assim que entrou na casa, ainda mergulhada em penumbra, onde fora de urgência para tratar um caso que, para ele, já tinha deixado de ser urgente há muitos anos. O refugiado antilhano, inválido de guerra, fotógrafo de crianças e o seu mais tolerante adversário de xadrez, tinha-se posto a salvo das inquietações da memória com um defumador de cianeto de ouro.
Gabriel García Márquez, O amor em tempos de cólera


Um dia (lembrem-me) hei-de alinhavar para aqui os meus primeiros parágrafos preferidos. A abertura de O Amor em Tempos de Cólera é um deles, mas hoje foi convocada por uma razão diferente. Lá chegaremos. Por enquanto é de começar pelo princípio.

No princípio era a terra, o carvão, os óxidos de ferro mais à mão de semear, e assim se faziam os cinzentos, os ocres, os esverdeados, avermelhados, acastanhados, e outros desbotados tons. Há trinta mil anos era o que se arranjava, e não se estava mal de todo. Fundamentalmente, rabiscavam-se animais e mulheres nuas, o que prova que há coisas que nunca nos saem da cabeça, e que a comida é uma delas.

   

Avancemos então um bom punhado de milhares de anos. Com muitas felizes coincidências e algum resquício de ciência à mistura, o homem foi aprendendo a isolar os pigmentos, e a produzir tintas mais intensas e resistentes à passagem do tempo e às agressões naturais. Por alturas da antiguidade clássica, o artista já dispunha de uma paleta jeitosa, mas o azul, em particular, sempre foi uma cor tramada. A principal fonte de pigmentos azuis era a pedra semi-preciosa conhecida por lápis-lazúli, que fornecia uma tonalidade esplêndida, com o inconveniente de ser também esplendidamente cara. Os egípcios, gente industriosa, a quem aprazia presentear os mortos e os faraós (e os faraós mortos) com coisinhas azuis, conseguiram num dia inspirado descobrir um método de produção de um pigmento alternativo e igualmente belo, a partir de materiais bastante mais acessíveis e disponíveis nas redondezas.

É impressionante como, com os conhecimentos rudimentares de que dispunham, conseguiram tal feito, e, na verdade, ainda hoje se discute qual seria ao certo esse processo de fabrico. Estariam então abertas as portas para a democratização do azul? Provavelmente... Não fosse dar-se o caso de alguém ter perdido a receita. Por qualquer razão , o azul egípcio caiu no esquecimento colectivo, e o bom velho lápis-lazúli foi readquirindo o monopólio.

Por alturas da renascença, o lápis-lazúli, extraído em minas situadas no actual Afeganistão, que já na altura não primava pela boa acessibilidade da sua rede viária, entrava na Europa através das rotas comerciais dominadas pelos venezianos. É comum dizer-se que o azul ultramarino (assim se designava o pigmento extraído do lápis-lazúli) era a mais cara das cores. Por mera curiosidade, a púrpura de Tiro, cor popular para as fatiotas de reis, imperadores, e gente de gostos berrantes, produzida a partir de umas caracoletas marinhas apanhadas no Mediterrâneo à razão de dez mil bicharocos para um grama de produto, custa hoje perto de três mil euros por grama. A título de comparação, um grama de ouro vale uns vinte ou trinta euros.

O azul ultramarino tornou-se assim sinónimo de requinte luxuoso. Na pintura, era geralmente utilizado para colorir o manto da Virgem, como nesta Anunciação de Fra Angelico, que não olha a custos (boa parte daqueles tons dourados são em folha de ouro verdadeiro, fixada sobre a tela).






Quando utilizado em frescos, ao contrário das demais cores, que eram aplicadas em “buon fresco”, sobre gesso ainda húmido, de modo a que o pigmento fosse generosamente absorvido, o azul ultramarino, tal como alguns dourados, era por razões óbvias geralmente aplicado “a secco”, depois das outras cores, formando apenas uma finíssima camada, não entranhada. O resultado desta ostentação superficial, séculos mais tarde, não deixa de ser curioso. Repara-se como, na seguinte Anunciação de Fra Lippi, se perdeu o azul das vestes de Maria e o ouro das asas do Arcanjo e dos halos






Alguns séculos passaram sem eventos dignos de nota no que toca à história do azul. Até que, em mil setecentos e pouco, algures em Berlim, um tal Diesbach, enquanto tentava produzir qualquer coisa avermelhada, sintetizou por engano uma molécula nova, que responde por variados nomes, dos quais hexacianoferratotetraférrico é o mais engraçado de se tentar pronunciar. É utilizada em medicina para tratamento de intoxicações por metais pesados, em histologia como marcador de células, e, em pintura, como azul.





Este Enterro de Cristo, por Pieter van der Werff, pintado em 1709 é a mais antiga utilização pictórica de azul da Prússia de que há conhecimento. As características cromáticas não são exactamente as mesmas do lápis-lazúli (para isso seria preciso ainda aguardar umas décadas, até que se descobrisse a síntese laboratorial do azul ultramarino), mas a diferença de preço era avassaladora, e finalmente o azul tornou-se uma cor acessível ao comum dos artistas.

Simultaneamente, com o hexacianoferratotetraférrico, a química descobriu os cianetos (do grego para azul), sobre os quais sei pouco. Apenas que alguns compostos, na presença de ácidos, libertam cianeto de hidrogénio, gás simpático, com um odor inesquecível a amêndoas amargas, muito popular entre nazis exterminadores de Judeus.

E foi assim que, graças à amnésia dos egípcios, à ganância dos mercadores de veneza, e à incompetência de um químico alemão, Jeremiah de Saint-Amour, fotógrafo, xadrezista, e infeliz, obteve o veneno com que pôs fim ao sofrimento. Um azul para os pintores, uma cura para o amor.



(para a Ana Conda, que sabe dizer hexacianoferratotetraférrico)

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Hans Baldung, A Harmonia das Graças (c. 1540)



Assim falou Hera, e Hipnos, jubilante, retorquiu:
-Vamos! Jura pela terrível água do Estige. Pousa uma mão sobre a terra fértil, e a outra sobre o mar salgado e luminoso, para que todos os deuses que rodeiam Cronos nas profundezas sejam testemunhas. Jura que me darás a mão de uma das jovens Cárites, Pasítea, por quem anseio todos os meus dias!

Homero, Ilíada

As negociações não foram fáceis. Hera começou por oferecer a Hipnos um trono de ouro indestrutível, fundido nas forjas de Hefesto. Mas quem tem cu tem medo, e naqueles tempos os deuses também tinham fundilhos. Para mais, Hipnos já tinha ido na mesmíssima cantiga uma vez, e ia-se danando com a brincadeira. Não fosse a ajuda da mãezinha, e Zeus tinha-o feito em picado. Ora, à segunda só cai quem quer, e o que Hera lhe pedia era arriscado: tratava-se de pôr a dormir o próprio Zeus, para a manhosa se escapulir e dar uma ajudinha aos gregos, que tinham chegado ao intervalo a perder para a equipa de Tróia. O dorminhoco Hipnos muito hesitou, mas quando Hera subiu a parada e lhe ofereceu a mão de Pasítea, deixou para trás a sensatez. O amor também os punha tolinhos.

Não é provável que Pasítea, deusa das drogas, seja uma das graças aqui representadas por Baldung, pois que, geralmente, essa honra cabe a Aglaia, Tália, e Eufrosina. Mas se for tão bonita como as estas irmãs compreendo a alegria saltitante de Hipnos.

As graças (Cárites, para os gregos), são um tema pictórico relativamente frequente, tratado, entre tantos outros outros, por Rafael, Botticelli, Cranach, e Rubens. Na composição mais comum são dispostas três em círculo, de forma a apresentar cada uma das figuras num ângulo diferente, e de preferência com pouco roupa (uma boa desculpa para ilustrar o corpo feminino de frente, de perfil, e de costas). A opção de Baldung nesta pintura, ora pendurada no Prado, foi outra, e ainda bem. As expressões faciais são muito humanas e intensas, cheias de personalidade, e tenho um carinho especial pelo pescocito do cisne no canto inferior esquerdo (símbolo de Vénus, provavelmente).

Hans Baldung foi nascido e criado pelas alemanhas, viveu entre 1484 e 1545, mais ano menos ano, estudou com Dürer, e tinha três grandes interesses na vida: jovens muito bonitas, bruxas muito fornicantes, e velhas muito feias. Pintou incessantemente a morte e o envelhecimento, a decadência do corpo. É um dos meus preferidos, e hei-de voltar a ele em breve.